Quando o corpo fala

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Simon Doyle
Quando o corpo fala

O formigamento dos meus dedos quando digito no computador. A sensação do cabelo roçando minhas bochechas e ombros. Uma coceira que se move por diferentes partes do corpo, parecendo escapar da tentativa de minhas mãos de querer pará-la.

Tempo de vida. Durante todo o tempo a vida. Respirando, vida. Meu parceiro e aliado desde que cheguei aqui. Quem me anda e quem me sente. O transporte pelo qual minha essência mais íntima interage com o mundo em que vivo. Com os outros. Os iguais. Os corpos que também se movem, animam e selecionam. Cada um no seu. O um de um, o um de todos.

Eu o escuto e olho para ele. E contemplo o alfabeto que ele mesmo criou para si. Sua linguagem e seu dom. Ele trabalha, sempre, e fala, quer eu ouça ou não. Ele segue em seu próprio ritmo. Em vez do ritmo do coração. O coração e o corpo. Uma infinidade de aspectos que os torna iguais, os aproxima. Sensível e intuitivo, perceptivo e aberto. Transparente e delicado. Forte e corajoso. Eles se apaixonam, se reconhecem, companheiros aliados nesta vida que se apresenta e continua.

Eu o deixei fazer e ser brincalhão. Isso toma o centro do palco e me leva. Não quero mandá-lo, mesmo que seja por pouco tempo, vou dar a ele esse direito que lhe corresponde. Deixe-o dançar e flutuar, subir e descer denso no solo que o sustenta todos os dias. Eu rastejo e me transporte pela corrente interna que o vive e que o une à mãe terra.

Quantas vezes ele falou comigo e eu não o ouvi. Eu desviei o olhar, fechei meus ouvidos e meus sentidos. Porque eu não estava interessado. Porque me incomodou. Porque ele me disse verdades que eu não queria ouvir e eram incômodas. Era mais fácil para mim segurar uma realidade que, mesmo feita de papelão, era controlada, pensei. E ele vinha, como um redemoinho, e me dizia que talvez não fosse isso que ele estava tocando. De sentido, de vida, de destino.

Isso o afogou e o afogou. Eu estava dizendo a ele para calar a boca. Semanas, meses, anos. Eu estava me afastando dele, marginalizando-o, para entrar em uma realidade ficcional que parecia original para mim na época. Até que depois de muito e muito falar, ele se cansou. Eu não o escutei nem o ouvi. E então ele começou a gritar. Forte, muito forte. Eu fiquei com medo claro. De repente, ouvi uma voz que nem reconheci, embora nunca tivesse parado de falar comigo. Mas aquela voz me ensurdeceu ... Eu queria tampar meus ouvidos, ainda mais alto. E então ele gritou mais e mais e mais. Eu queria bater o pulso ao qual estava me submetendo. Exigindo que tudo o que estava se desfazendo diante de mim fosse mantido.

Mas não. Se foi. Tudo. Tudo. Eu. E então o corpo parou de gritar. Em seguida, ele me acariciou, com palavras, com suspiros e sussurros. Ele me contou histórias e me deu mensagens. Rendido, extasiado, destruído, desmontado ... Eu só conseguia olhar para ele, com o canto do olho, e ouvi-lo. Pela primeira vez, eu iria abrir e deixar tudo o que ela disse me penetrar. Porque ele não tinha mais pelo que lutar. Ele não tinha nada para proteger ou justificar. Tudo se foi. A cortina daquela obra que ele via havia sido baixada e ele se encontrava em um camarim em forma de caverna interna. E nada aconteceu lá. Nem tempo nem espaço. Eu acabei de notar o quão machucado eu estava depois de tanto resistir e lutar. Mas eu disse o suficiente, ou fui forçado a fazê-lo.

Seja como for, eu apreciei isso. Eu já estava cansado, exausto também. Eu estava farto de viver por alguns anos cego para mim mesmo. Para meu sentimento e respiração. Aos meus anseios mais secretos, que brilharam no momento em que lhes dei espaço para isso. E então eles dançariam diante de mim, no meio da escuridão daquela caverna, e me ensinariam danças que eu nunca tinha visto antes. Explicaram possibilidades que eu não conhecia e voltaram para dentro de mim para acompanhar o movimento, mais despertos, por dentro. Quadris, seios, cabeça, pés, mãos ...

Em mim. Um despertar. Aceitar e tomar consciência de que tudo aquilo era eu, parte de mim totalmente e indissolúvel ao meu tudo. Muito mais conectado ao céu e à terra do que a razão poderia estar em muitos momentos. Pare de apoiar algo que não foi escolhido nem caro para mim. Mas imposta, foi aceita como uma realidade própria. Construir a partir disso é destrutivo, doentio.

Então, quando me lembro de mim mesmo esticado e espancado, exausto e machucado, eu sorrio e choro ao mesmo tempo. E eu dou graças, graças infinitas por ter dito o suficiente para mim. Para ter parado, querido corpo. Por me dizer que não estava indo bem e que eu estava me escondendo de mim mesma. Que estava seguindo uma corrente que não era a minha e que isso poderia me levar à morte da minha essência e do meu eu mais puro. Eu tive sorte. Logo eles me disseram, eles me avisaram, que o caminho que eu estava seguindo estava cheio de minas porque estava longe do meu coração. Da minha alma e do meu centro.

Eu estava deitado lá não sei quanto tempo. Eu não contei nem me importei. Eu me deixei curar até que um dia, de repente, percebi como meu corpo estava animado. Sensível e vivo. Tantas coisas aconteceram com ele.

Eu os tomei como meus amigos, os reveladores de segredos profundos. Depois de ter percorrido aquelas masmorras, levantei-me convencido de que tudo aquilo havia assumido um significado diferente em mim e na minha consciência. Que nada mais seria o mesmo, porque de repente eu me integrei de uma nova forma. Minhas sensações, emoções, intuições e entranhas estavam em sintonia com meu corpo. E meu corpo me representou como uma parte intrínseca desta existência humana. O protagonista intangível, indiscutível, minhas raízes e meu apoio.

Então eu o deixei fazer isso. Diga-me e guie-me. Para me aconselhar quando sim e quando não. Quando algo era bom para ele e quando algo não era agradável. Com pessoas, com situações, com música e com canções. Com comida e com esportes. Com danças e sons. Eu o deixei falar. E ele nunca mais gritou. Não desse jeito, desesperado e exorbitante, como ela. Agora, às vezes, ele levanta a voz. Um pouco. Mas então eu olho para ele e ele sorri para mim. Você sabe e eu sei que não vou deixá-lo em vão. Que vou ouvi-lo. Que tudo que você me diga será valorizado como uma verdade a ser sentida.

Ele é meu guia, meu termômetro interno, minha bússola e meu maior aliado.

Eu sei que quando estou a caminho, ele descansa em paz, fluindo e nadando pelo sentido da vida.


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